Falar de diversidade humana virou pauta de reunião dentro de muitas organizações. O que é maravilhoso, diga-se logo, dadas as disparidades e injustiças abismáticas ainda engendradas na nossa sociedade de forma estrutural e visceral. A diversidade começou a virar uma realidade dentro de empresas principalmente nos anos 90, muito impulsionada pela globalização, empoderamento econômico das comunidades de menor renda e crescimento exponencial na quantidade de pessoas plugadas na internet. Este novo mundo “sem fronteiras” revelou-se um ecossistema com mais consumidores potenciais e maior contingente de força de trabalho. Desta forma, pressionou-se as empresas a retirarem seus tapa-olhos e a passarem a desenvolver estratégias específicas tanto para contratação da diversidade quanto para elaboração de novas estratégias mercadológicas e de vendas.
Ainda na década de 90, outros dois fatores favoreceram o início das políticas de diversidade nas organizações, em particular multinacionais com atuação no Brasil. O primeiro deles são as mobilizações sociais clamando por direitos iguais dos minorizados, cada vez mais bem organizadas e articuladas, ganhando importantes vozes pelas redes sociais. O outro fator foi o aparelhamento legislativo e normativo do país, com a publicação de leis antirracistas e antidiscriminatórias: a lei que cobre os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor de pele (Lei 7.716/1989) ganhou mais notoriedade e adesão, as pessoas com deficiência conquistaram seu direito a empregos formais devido às cotas nas empresas (Lei 8.213/1991) e a homossexualidade deixou de ser considerada patologia saindo do catálogo de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Enfim, uma coisa é indiscutível: as empresas estão falando mais e mais de diversidade e inclusão, seja estas de origem privada ou pública, do segundo ou do terceiro setor. Agora, a pergunta que quero suscitar aqui para reflexão diz respeito sobre outro verbo: o fazer.
Quem e quanto estamos efetivamente fazendo pela diversidade? Quantas ações afirmativas temos implementado e mensurado? Quais mudanças comportamentais já podemos observar dentro das empresas, principalmente no alto escalão, que legitime o pilar de diversidade e inclusão na estratégia corporativa das empresas onde trabalhamos? Quem, a final de contas, está jogando o jogo na boa intenção e quem está pela má intenção?
“Como assim pensar em má intenção quando o assunto é tão sério?”, você pode estar se perguntando. Refiro-me à prática simbólica, superficial, maquiada de inclusividade. A tudo aquilo que é pensado e feito para insinuar uma história bonita que, nos bastidores, revela-se outra coisa essencialmente díspar. Sim, infelizmente “tem gente pra tudo” neste mundo.
O descompasso entre o que o que é mostrado ao público e o que é verdadeiramente feito, no universo da Diversidade e Inclusão, recebe o nome Diversity Washing. Esta é apenas uma das inúmeras variantes de “lavagem” existentes por aí, como o Sharewashing (relativo à economia compartilhada), Vegan Washing (relativo ao veganismo), Artwashing (relativo a galerias de arte e museus) e o mais conhecido Greenwashing (relativo à sustentabilidade e ecologia). Todos estes termos são mutações do termo brainwashing, que significa “lavagem cerebral”.
Lembremos sempre que o mundo em que vivemos nos dias de hoje é movido pelo consumismo desenfreado. Concordemos ou não, isto é uma realidade muito evidente e que afeta o nosso jeito de pensar e fazer as coisas. Em um contexto turbulento como este, é inevitável que haja pessoas que enxerguem nos fenômenos das movimentações sociais e culturais oportunidades de “surfarem a onda” e, assim, tentarem ganhar mais coraçõezinhos nos seus perfis virtuais e principalmente mais consumidores de seus produtos e serviços. Afinal de contas, como diria Henri Lacordaire, “por toda a parte onde se quer vender, o homem encontra compradores.”
Dentro do universo de práticas do Diversity Washing, existe uma em específico que gostaria de trazer para esta reflexão: o tokenismo. Novamente, mais um termo de origem na língua inglesa. O termo tokenismo advém da palavra “token”, que significa “símbolo” e foi utilizado pela primeira vez por Martin Luther King Jr, em um de seus textos publicados no início dos anos 60:
“A noção de que a integração por meio de tokens vai satisfazer as pessoas é uma ilusão. O negro de hoje tem uma noção nova de quem é”.
Neste trecho do artigo, Luther King apresenta o tokenismo como uma prática (má intencionada) que serve apenas para transmitir uma imagem inclusivista de si ou da empresa que representa. Um exemplo que ilustra bem esta conduta é a contratação de uma pequena quantidade de pessoas que compõem um determinado grupo de afinidade ou minorizado em meio a uma maioria esmagadora de funcionárias e funcionários de pele branca, heterossexuais, cisgêneras, de centros urbanos, da classe A, com a finalidade de “dar o recado” ao mercado de que a empresa se preocupa com diversidade e respeita as diferenças. Além disso, é bem comum que estes tokens passem a ser porta-vozes da empresa quando o assunto é diversidade, empatia, inclusão, acessibilidade. É como se estas pessoas virassem garotas ou garotos propaganda e passassem a ser percebidas como representantes daquele ou outros grupos minorizados. Compreende o perigo iminente? Obviamente não me refiro aqui às ações e políticas afirmativas. Pelo contrário! Estas sim são regidas por boa intenção. O tokenismo é a outra face da moeda, onde a má intenção impera. Acredito que as distinções estejam bem claras aqui, assim como meu posicionamento frente a cada uma delas.
Talvez a parte mais desafiadora no combate ao tokenismo resida na nossa fragilidade de percepção e sensibilidade em detectá-lo imediatamente. Por vezes, o racismo passa na nossa frente e não o vemos. Ou o capacitismo e a homofobia, que batem à nossa porta e não escutamos. Isso porque o tokenismo usa de boas práticas de publicidade, vendas, negociação e de oratória para nos seduzir. É necessário, portanto, muita atenção, observação e ponderação. Estejamos atentas e atentos ao que se revela na nossa frente quando as cortinas do show são erguidas. Quem realmente está ali no palco? Por trás de toda máscara existe a realidade.
Em 1963, o ativista norte-americano Malcolm X foi entrevistado pelo jornalista Louis Lomax sobre os avanços do Movimento dos Direitos Civis de 1963. Quando o entrevistador, que também é negro, soltou a frase: “mas tivemos alguns avanços!”, Malcolm X retrucou: “Que avanços? Tudo o que conseguimos foi um tokenismo – um ou dois negros em um emprego ou em um balcão de restaurante, para que o resto de vocês fique quieto”(1). Este trecho do diálogo entre dois negros mostra o que comentamos anteriormente: o desafio de não nos levarmos pelo canto da sereia e deixarmos passar atitudes discriminatórias. Aparentemente, Lomax havia se deixado levar pelo encanto vendido na época.
O tokenismo nasceu num momento em que a sociedade vivia uma extrema discriminação racial e que reconhecia a existência deste problema, mas sem realmente querer resolvê-lo, já que demandaria que o grupo dominante abrisse mão de seus privilégios. Isto foi em meados de 1950 e começo de 1960. Aí, eu fico me perguntando: quanto a nossa sociedade evoluiu nestes últimos sessenta anos? Quanto homens héteros e brancos querem abrir mão de seus privilégios para uma sociedade mais equitativa, justa e fraterna?
Segundo a autora Rosabeth Kanter, professora da Escola de Negócios de Harvard, há três grandes consequências do tokenismo:
Quero me ater agora a este último aspecto levantado por Kanter. O tokenismo não é inerente apenas ao racismo estrutural, mas a toda forma de discriminação. No mercado de trabalho, vê-se exemplos de tokenismo feminino, também chamado de “Príncipio Smurfette”, por conta do desenho animado Os Smurfs, que mostra uma única personagem feminina dentro de um grupo de homenzinhos azuis que vivem na floresta. Como aconteceu com Smurfette, mulheres que são as únicas representantes do gênero feminino dentro de um departamento ou escritório acabam padecendo de uma visão estereotipada e enviesada da mulher por parte dos demais colegas.
Como acabamos de ver, produções audiovisuais para o cinema e televisão são outra forma de materialização do tokenismo em nossa sociedade. Sabemos que a publicidade ludibria e fascina, mostrando apenas o lado reluzente da história. A publicidade é território propício para o cultivo desse tipo de “lavagem”, pois nos pega em um momento de descontração e entretenimento, quando estamos com nossa consciência anestesiada. Trabalhei nessa área por mais de 15 anos e sei bem como ela opera.
Para finalizar aqui nossa reflexão, faço um convite a você, leitora e leitor: comece a contextualizar sempre o que ouve e vê sobre diversidade e inclusão das empresas e marcas. Vista sempre as lentes da ponderação. Antes de bater palmas para uma iniciativa de aspecto inclusivista, pare e pense o todo. Ações isoladas são forte indício de que se está “dourando a pílula”. Compare os valores e princípios daquela organização com a ideia que está sendo vendida a você. Converse com pessoas que trabalham ou prestaram serviços àquela empresa. Pesquise o histórico de ações afirmativas dela. Toda esta conduta investigativa te ajudará a ter mais subsídios factuais para legitimar ou não práticas que se intitulam como sendo de diversidade e de defesa dos direitos humanos. Ante à esfinge da bondade e da inclusão, foque em decifrar o enigma, o que está escondido nas entrelinhas. Caso contrário, “nhac”!
Face ao que temos acompanhado nos noticiários do Brasil e do mundo, o momento exige atenção. Não se venda por ideias vazias e disfarçadas. O que mais vemos são fake news e argumentos infudamentados. Acordemos, questionemos, reflitamos, vigiemos. Neste mercado contaminado por modernos Cavalos de Tróia, cabe a máxima dos grupos escoteiros: “sempre alerta!”.
Rodrigo Credidio é consultor em empatia e comunicação inclusiva. É sócio-fundador da Goodbros e co-criador da Oficina de Empatia. Formado em Comunicação Social e pós-graduado em Administração de Empresas, trabalhou na área de marketing e em agências de propaganda por 16 anos. Atualmente, presta consultoria e realiza projetos ligados à empatia, diversidade e acessibilidade.
Lomax, Louis E. “A Summing Up: Louis Lomax Interviews Malcolm X.” When the Word Is Given: a Report on Elijah Muhammad, Malcolm X, and the Black Muslim World. https://teachingamericanhistory.org/library/document/a-summing-up-louis-lomax-interviews-malcolm-x/
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4 Comentários
Que reflexão ótima. Pontos de vista esclarecedores. Estejamos sempre alertas. Adorei. Parabéns professor!!!! Gratidão.
Oi, Alisson. Que bom que gostou do post do Rodrigo. Realmente, ele trouxe uma ótima contribuição com reflexões muito pertinentes!
Gostaria de saber o nome da autora do texto, para fazer uma pequena citação no meu TCC. Agradeço!
Olá, o nome do autor é Rodrigo Credidio. Ele fez um guest post para o blog da Cabrun!. As referências dele estão no final do texto.